domingo, 14 de maio de 2017

Lembrar ou não, eis a questão



Ao entardecer, o ar fica mais frio, os animais mais calmos. E todo o resto mais sombrio. As luzes dentro das casas são ligadas artificialmente, e a relação entre pessoas não passa de movimentos pré-estabelecidos. Como se todos estivessem ligados no piloto automático.

Angelina caminha pela rua, olha pelas janelas das casas e observa famílias, imaginando participar delas. Monta conversas inteiras e segue para o lar seguinte, como se dissesse "até logo". Ela nunca entendeu por que se entretinha tanto fazendo isso, por horas a fio. Mas aquilo a acalmava e lhe trazia um sentimento muito bom.

Quando chegava em casa, cumprimentava seus parentes e seguia para seu quarto. Pegava um caderno simples, de capa preta, e anotava tudo o que havia "conversado" com os vizinhos. Todos sabiam o que ela fazia, mas achava que era o jeito dela de lidar com tudo. Ninguém se atrevia a introduzir o caos na casa. Então deixava ela em seu próprio mundo.

Isso decorreu por meses. Até que um dia, quando "conversava" com um casal que morava na casa 1007 da rua Santos, ela se viu sendo observada por um gato manchado. Seus olhos verde água brilhavam na noite, e a luz refletida da Lua iluminava o caminho entre os dois. Ela se abaixou e chamou o bichano. Ele caminhou em direção a ela calmamente, como se a conhecesse. Ele se esfregou em suas pernas pedindo carinho e ela acariciou seus pelos. Parecia um reencontro de dois amigos, mesmo que ela não lembrasse de nada. 

Há dois anos ela tinha sofrido um acidente de carro que lhe tirou o marido e as memórias. E não sabia o que tinha sido mais doloroso. Apesar de não lembrar de nada, aquele pequeno ser, implorando por atenção, parecia lhe conhecer.

Angelina então desnorteada pela sensação de dejavú, caminhou para casa, sendo seguida por Napoleão. Esse nome brotou em sua mente como um pensamento adormecido. As coisas pareciam implorar para serem lembradas e sentidas, mas estavam sendo bloqueadas por algo que ela não sabia o que era. Sua mente estava inquieta, conturbada.

Ninguém atrevia dizer o que havia acontecido antes do acidente. Só lhe diziam o essencial. Mas o que sabiam sobre isso? Esconderam seus antigos diários e fotografias, e conversavam o mínimo possível sobre isso. Mas talvez aquele gato lhe ajudasse em algo.

A família que lhe restou eram rostos vazios com nomes pairando sobre eles. Não significavam nada, ela se sentia prisioneira em uma ilha de mentiras infinitas. Estava a um quarteirão de casa, se perdendo em pensamentos. O gato andava alegremente ao seu lado. Mas parou de repente, e miou alto. Ela não percebeu o porquê até sentir o impacto forte sobre seu corpo.

Angelina Duarte acordou no hospital três dias depois, olhou para o teto branco e clarim estava sendo observada. Olhou para o lado, e em uma cadeira estava sua mãe, Helena. Piscou algumas vezes rapidamente, e com a voz fraca, mas clara, disse:
-Eu me lembro.

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